No mesmo ano em que apareceu o seu primeiro livro, intitulado Memória de Elefante (1979), surge do mesmo autor uma das mais importantes obras literárias sobre a Guerra Colonial, Os Cus de Judas, que tem merecido dezenas e dezenas de edições. Estruturado num longuíssimo monólogo, horas passadas num bar, na companhia de uma mulher que parece que o ouve atentamente, e com remate em casa do autor, e em que este se despede daquela companhia de ocasião, este romance autobiográfico mergulha na infância, na vida familiar, num admirável amor que irá acabar em rutura, sabemos que o autor é médico e que como alferes-médico passará a sua comissão militar em Angola. E escutaremos os horrores em que o alferes-médico esteve metido.

À semelhança do livro de estreia, o livro está polvilhado de imagens literárias, algumas aparentemente estrambóticas, mas todas com resultado fulminante (torce-se, retorce-se, e tudo fica mais claro). O álcool perpassa a atmosfera da narrativa. “Não quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espetro da agonia com a língua e o estômago a arder, e esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume de tia-avó possui a benéfica virtude de me incendiar a gastrite e, em consequência, subir o nível da coragem: nada como a azia para dissolver o medo ou antes, se preferir, para transformar o nosso passivo egoísmo habitual no estrebuchar impetuoso, não muito diverso na essência, mas pelo menos mais ativo: o segredo da famosa úlcera de Napoleão, percebe, a chave que elucida Wagram e Austerlitz.”
Dirigindo-se sempre à sua companheira emudecida, dirá da sua infância: “Nasci e cresci num acanhado universo de croché de tia-avó e croché manuelino, filigraram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelô, proibiram-me o Canto IX de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir.” E, numa guinada súbita, faz-nos entrar nas Terras do Fim do Mundo, a guerra vai começar para o leitor: “Gago Coutinho, a trezentos quilómetros ao sul do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo português obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e de fitas ridículas, o posto da PIDE, a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos: uma vez por semana eu sacudia o badalo do sino de capela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente desertas, no silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam em surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos contornos induzidos das sombras…”. Lembra o seu colaborador, o Sr. Jonatão, no tratamento dos leprosos, o hospital civil, as peripécias sexuais dos tropas.
Estamos agora em Ninda, solta-se-lhe uma catilinária contra a Guerra Colonial: “O que fizeram do meu povo. O que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar, presos por três fieiras de arame farpado numa terra que não nos pertence, a morrer de paludismo e de balas cujo percurso silvado se aparenta a um nervo de nylon que vibra, alimentados por colunas aleatórias cuja chegada depende de constantes acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um véu de luto…”. São essas as vivências da guerra que ele vai contar pela noite fora, as minas anticarro, as emboscadas, as pernas devoradas pelas minas antipessoais. É um monólogo à deriva, ele fala de 1958 e de Humberto Delgado, questiona mesmo porque é que não se fala daquela guerra por onde andou um ror de gente, perto de um milhão, só contando com a gente de cá, falando com a sua testemunha emudecida dir-lhe-á mesmo que até parece uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar. E é nisto que vem uma recordação esplendente, ocorreu na tarde de 22 de junho de 1971, estava ele no Chiúme, mandaram-no chamar ao rádio para lhe anunciar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da filha, rómio, alfa, papá, alfa, rómio, índia, golfe, alfa. “O Chiúme era o último dos cus de judas do Leste, o mais distante da sede do batalhão e o mais isolado e miserável: os soldados dormiam em tendas cónicas na areia, partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava como um fruto podre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo comércio, quando antes da guerra os caçadores de crocodilos por ali passavam a caminho do rio, e eu dividia com o capitão um quarto do edifício da chefia de posto, através de cujo teto esburacado os morcegos vinham rodopiar sobre as nossas cabeças.”
Lança-se em novos episódios da sua vida pessoal, a hora está adiantada lá no bar, parece ser de toda a conveniência pagar a conta, é nisto que entram na conversa os soldados catangueses de Tchombé, dá deles um retrato feroz: “Reunidos e armados pela PIDE, constituíam uma horda indisciplinada e petulante a que a emissora da Zâmbia chamava ‘os assassinos a soldo dos colonialistas portugueses’: não faziam prisioneiros e regressavam da mata aos berros, com os bolsos cheios de quantas orelhas lograssem apanhar: apoderaram-se das mulheres da sanzala perante o desespero resignado do soba, cada vez mais perdido na contemplação da chana.”
De um modo geral, o nosso ex-alferes-médico é muito pouco amável com a rememoração dos seus camaradas oficiais, caminhamos para as quatro da manhã no bar, ele e a sua testemunha decidem ir para casa dele, na Picheleira, fala-lhe da sua casa, faz suposições sobre a casa dela; e regressa ao tempo de guerra e às férias em Lisboa, o deslumbramento do reencontro com a mulher amada e o conhecer a filha, na viagem de avião da TAP para Lisboa uma hospedeira fez-se ao piso, iremos ter tragicomédia no regresso a Luanda.
E se há frases notáveis com imagens estarrecedoras, guarde o leitor esta:
“Depois de correr aflito no alcatrão, a agitar as asas numa ânsia de asma em busca do ar que lhe faltava, o Nord Atlas soltou-se definitivamente da pista num voo desordenado e torto de perdiz, roçando com as penas gordas da barriga o telhado de zinco dos musseques, em que a miséria dos homens e dos cães se afogava numa humidade quente de barrela.”
Pronto estamos novamente em Lisboa, mas logo o discurso pode voltar àquela guerra de África. Já estamos em casa do ex-alferes-médico e ficamos a saber que estão a abandonar o Chiúme em direção do Norte. Os uísques sucedem-se, fica-se a saber que passaram meteoricamente por Malanje. O discurso que ele trava com a testemunha emudecida sobre os atos amorosos é de um cinismo por demais cruel, ele confessa-lhe que tem repugnância em dar-se, e África regressa ao discurso: “Se você conhecesse as madrugadas de África na baixa do Cassanje, o odor vigoroso da terra ou do capim, o perfil confundido das árvores, o algodão aberto até ao horizonte de uma pureza de neve amortalhada… O que de certo modo irremediavelmente nos separa é que você leu nos jornais os nomes dos militares defuntos e eu partilhei com eles a salada de frutas da ração de combate e vi soldarem-lhes os caixões na arrecadação da companhia, entre caixotes de munições e capacetes ferrugentos.” E é nesse precioso instante que entra em cena uma tenra personagem, Sofia, uma rapariga africana de Gago Coutinho, era muito mais do que uma lavadeira, a descrição do encontro tem fulgores de diamante, tudo vai acabar mal, Sofia será levada pela PIDE, e o autor dirige-se à sua testemunha emudecida, queixa-se da pessoa em que ele se tornou: “Uma criatura envelhecida e cínica a rir de si própria e dos outros o riso invejoso, azedo, cruel dos defuntos, o riso sádico e mudo dos defuntos, o repulsivo riso gorduroso dos defuntos, e a apodrecer por dentro, à luz do uísque, como apodrecem os retratos nos álbuns.” Vem aí os primeiros vislumbres da alvorada, chegou a hora da despedida, aliás com abraços e beijos, é um final profundamente triste:
“Deixe que ele volte de África para aqui e me sinta feliz, quase feliz, acariciando-lhe as nádegas, o dorso, o interior fresco e macio das pernas, ao mesmo tempo rijo e tenro como um fruto. Deixe que eu esqueça, olhando-a bem, o que não consigo esquecer, a violência assassina na terra prenhe de África, e tome por dentro você quando do redondo das minhas pupilas espantadas, enodoadas da vontade de si de que sou feito agora, surgirem as órbitas côncavas da fome das crianças da sanzala, penduradas do arame.”
Agora sim, é despedida, acabou a comissão de 27 meses nos cus de judas, o alferes-médico regressa com um saco cheio de livros ao ombro, a alegria de ver as filhas, vai cumprimentar umas tias e uma delas lhe dirá sem aspereza:
“Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.”
Estamos no final da década de 1970, a entrar numa idade de ouro da nova literatura portuguesa, onde este Os Cus de Judas foram uma trave-mestra.
Mário Beja Santos










