Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.
António Lobo Antunes inicia a sua atividade literária em torno da guerra colonial e dos seus traumas, não exclui um olhar invasivo sobre a saúde mental e as perturbações de quem dela sofre, ruma seguidamente para as convulsões em torno do processo revolucionário, e então chegamos (1988) a uma obra totalmente dissonante com tudo o que até então escrevera, As Naus, uma aparente viagem caótica e anacrónica de quem andou envolvido nos Descobrimentos e que deles regressa na hora da descolonização, é uma narrativa fragmentária, nunca o poder das imagens atingira tal resplendência, um permanente sobressalto no leitor, umas vezes parte-se na naus e regressa-se de avião, qualquer hipótese de diacronia é posta de parte, entranham-se esses séculos de epopeia com o tempo que acolhe quem vem repatriado, veja-se um caso de quem acaba de chegar de Angola: “Passando por uma placa que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas na margem, a aguardar os colonos, presa aos limos da águas por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardénia, achámos à espera, entre barcos e remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas.” Entrarão em cena nautas e escritores e missionários, poderão dar pelo nome de Gil Eanes, Francisco Xavier, um homem de nome Luís a quem faltava a vista esquerda, Francisco Rodrigues Lobo, Vasco da Gama, Diogo Cão, há um ponto de encontro, uma quase placa giratória, a Residência Apóstolo das Índias, e muito mais, entre o Portugal muitíssimo antigo e o frenesim caótico do regresso, vem da Ásia e da África. E António Lobo Antunes mimoseia-os com uma vasta prosódia com todos os sentidos, vê-se, escuta-se, saboreia-se, tateia-se, os cheiros são infindáveis. E há associações que nos arrastam na enxurrada da melopeia da escrita, assim: “No decurso desse período choveu sem parar um temporal que harpejava cravo nos telhados das gelosias. O vento desordenava os galhos das mangueiras desorientando o azimute dos pássaros, e os derradeiros soldados partiam curvados sobre as guinadas da água.” Nunca o poder da imagem foi tão avassalador na obra de Lobo Antunes.

Há os desacertos, o choque do regresso, os hotéis, as pensões, a sobrecarga mitológica do que se guarda no cofre da memória, chegara a hora da independência, impunha-se repatriamento, o subir para um avião com meia dúzia de tarecos, deixar em terra uma vida que perdera sentido. Será Lixboa o ponto de encontro, no Tejo há sempre naus e galés, nenhum encontro pode ser encarado como insólito, até poderá fazer sentido Fernão Mendes Pinto conversar com Manoel de Sousa de Sepúlveda, falarão de mandarins ou de musseques, andarão na vida noturna, veremos Vasco da Gama a passear com el-rei D. Manuel, é tudo um aparente desatino, até jogarão à sueca. Quando necessário, invocar-se-ão os que vieram de Goa ou até o poeta lírico Tomaz António Gonzaga, e reproduzem-se cenas que poderão ter acontecido numa atmosfera de tragicomédia: “Dos luxos de mesquita ou de bordel francês do Hotel Ritz transferiram-nos para uma pensão em Colares, com muitas bandeirinhas de países diversos nas fachadas e lençóis rasgados e muros sujos pelos que regressaram de África antes deles e passearam no teto a lama verde das botas.” Escutaremos muito marginalidade, até porque a ocasião faz o ladrão e pode dar-se o caso de a prostituição ser um recurso, e temos o homem de nome Luís a escrever oitavas na esplanada de um café de Santa Apolónia, aqui a imagem é ribombante: “O foguete de Madrid arribou no esturro de vapor, soprando água a arder pelo focinho, e um comboio de mercadorias arrancou da última linha num vagar infindável, com chifres de bois minhotos e narinas de mulas nos postigos dos vagões. Os pirilampos verdes dos táxis tornaram a balizar o escuro, esperando, de motor a trabalhar, na incrível paciência das aranhas.”
E chegou o momento de vermos o caminho de Alcácer Quibir, porque é inevitável o desfecho de sonhar com o regresso de o Desejado, entretanto entrarão em cena Pêro Vaz de Caminha, Pedro Álvares Cabral, até um génio do cinema, Luís Buñuel, e um poeta andaluz de arromba, Federico Garcia Lorca. Uma chusma de gente muito adoentada, cambaleante, com pigarros ouviu a notícia da presença na Ericeira de D. Sebastião aparecer nas ondes num cavalo branco, como aquele caminha bíblico dos cegos reata-se a esperança de que vem por aí um salvador, é o ponto final na história, a conclusão eloquente de que a tal mitologia não deixará de obsequiar a secreta esperança de um Quinto Império, de inopinada aparição:
“Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto o aparecimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortiça e nos caixotes esquecidos. Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalho dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas, que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
Grande escritor português!
Será concerteza de leitrura obrigatória!